“Única estrutura capaz de tornar o indivíduo forte…”
Em um trecho clássico de “A Cidade de Deus”, Santo Agostinho diz que “dois amores deram origem a duas cidades: à cidade terra, o amor próprio até a indiferença por Deus, à cidade celeste, o amor a Deus até a indiferença por si mesmo. Aquela se gloria em si mesma, esta se gloria no Senhor. Aquela exige a glória dos homens, para esta a maior glória é Deus, testemunho da consciência. Aquela levanta a cabeça para o alto, esta diz a Deus: ‘Vós sois a minha glória, que levantas a minha cabeça’. Naquela domina a paixão do domínio (libido dominandi) nos seus líderes e nos povos que sujeita, nesta prestam serviços na caridade os líderes com o seu comando e os súditos com a sua obediência” (Agostinho, S., A cidade de Deus, XIV,28).
Libido dominandi. Com esta expressão, Santo Agostinho sintetizava o amor pelo poder que configura a alma de todos aqueles que pretendem dominar a cidade dos homens, as estruturas humanas que se esquivam da soberania da graça e, portanto, se erigem sobre a desordem do pecado como forças tirânicas, as únicas que se pretendem capazes de controlar a força destruidora da obstinada vontade humana e impor a ordem.
Uma ordem, porém, opressiva, ditatorial, controladora. No fundo, portanto, uma ordem aparente, uma dissimulada desordem. Constituído por Deus como criatura livre, é em liberdade que o homem deve ser formado e é como ente capaz de se dirigir deliberadamente ao seu fim último que deve ser conduzido. Por isto, não pode haver verdadeira ordem senão no amor e na graça, elementos fundantes da cidade de Deus, esta outra estrutura que, sem aniquilar as realidades naturais, as supera, transcende, assume e eleva.
A história humana, portanto, se dirige à sua culminância caminhando nesta discreta tensão: a liberdade da graça é antagonizada pela tirania do pecado, e isto assume contornos não apenas morais, mas também estruturais.
Em certo sentido, a parábola do filho pródigo (cf. Lc 15,11-32) descortina este contraste, apresentando a casa do pai em oposição ao chiqueiro dos porcos. São Paulo desenha igualmente a Igreja como lar em que somos preservados da malignidade dos homens e de seus artifícios enganadores (cf. Ef 4,11-16).
Após as revoluções modernas, a volúpia de grupos para controlar o comportamento das sociedades e induzi-las a uma crescente servidão tornou-se não apenas cada dia mais possível, graças à tecnologia, mas também incontrolável. Os esforços por diluir as estruturas primárias da sociedade e deixar o indivíduo como átomo desprotegido diante do massacre do sistema condensaram-se em torno daquilo que São João Paulo II chamava de “cultura da morte” (cf. João Paulo II, S., Encíclica Evangelium vitæ [25.03.1995], n. 28). Já um ano antes, ele mesmo descrevia esta tensão como uma verdadeira guerra entre “duas civilizações” (cf. Idem, Carta às famílias [2.02.1994], n. 13).
Neste encarniçado combate pelo poder, o esforço por reduzir o ser humano a uma mera força de trabalho impessoal traduziu-se numa nova antropologia que precisa esvaziar a vida de todo e qualquer significado e dignidade: o aborto e a contracepção, a ideologia de gênero e a desaculturação, o tecnicismo e a revolução sexual são apenas ferramentas para a decomposição do homem naquilo que o Papa Francisco chama de “cultura do descarte”: “o ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do ‘descarte’” (Francisco, S.S., Exortação apostólica pós-sinodal Evangelii gaudium [24.11.2013], n. 53).
Neste cenário, a família aparece como única estrutura capaz de tornar o indivíduo forte ante a vulnerabilidade à qual está exposto. Apenas se tomar consciência de sua posição numa sociedade em aberta desconstrução, a família poderá tornar-se não apenas protetora da vida, mas também muro de arrimo em que se apoia toda a sociedade ocidental.
A crise civilizacional que vivemos é produzida, em seus grandes efeitos, pela potencialização do domínio de poder e do enfraquecimento das sociedades pelo desmonte sistemático de seu fundamento pétreo. A única chance que temos de não sucumbir a este impulso desagregador é entendermos que cada família deve ser um núcleo de resistência espiritual que não apenas reforça a consciência de cada um como portador de uma dignidade exclusiva e inegociável, mas também os liberta de todas as formas ideológicas de manipulação e os projeta na direção da graça, pela qual se podem esquivar de todo tipo de dominação e se ampliar na intensidade do amor divino, essência mesma da Cidade de Deus.
Pe. Dr. José Eduardo de Oliveira e Silva